Rio de Janeiro, setembro de 2015. Aqui na “cidade maravilha, purgatório da beleza e do caos“,
conforme canta Fernanda Abreu em “Rio 40 Graus”, vivemos tempos
sombrios, quase só caos. Tempos em que o outro é visto como inimigo e as
liberdades são cerceadas. Dois fatos distintos, cujos contextos possuem
similaridade (ir) racional, na cantada cidade maravilhosa: liberam o
consumo de cervejas nos estádios onde foi proferido, onde, dentre
diversos votos, um foi a favor da liberação mas com argumento excludente
que chamou a atenção, bem como querem voltar a impedir jovens da
periferia carioca de irem às praias.
Quanto à cerveja, após
alguns anos de hipócrita proibição, foi liberada para ser vendida e
consumida nos estádios do Estado do Rio de Janeiro. O fatídico discurso
do Deputado Estadual Jorge Felippe Neto (PSD-RJ) chamou atenção: alegou
que os problemas nas arquibancadas foram resolvidos com o aumento do
preço dos ingressos, citando ainda episódios em que copos de xixi eram
arremessados sobre a torcida (veja a partir dos 51 minutos da sessão
ordinária do dia 22 de setembro de 2015 na ALERJ). Seu discurso creditou
implicitamente todos os problemas dos estádios às pessoas de baixa
renda que supostamente não mais frequentam estádios. Esqueceu-se, por
certo, que a educação, cerne da questão, é a maior de todas as parcelas
que resulta no convívio em sociedade, independentemente de renda. Este
não deveria ser um argumento compatível com a conduta que se espera de
um Deputado Estadual. É um argumento falacioso, seletivo, higienista e
autoritarista.
Não suficiente, na mesma linha excludente e
autoritarista de raciocínio e postura, o Governador do Estado do Rio de
Janeiro, Luiz Fernando “Pezão” (PMDB-RJ), após os arrastões ocorridos
nas praias cariocas recentemente, afirmou que, mesmo existindo decisão
da justiça que impede que menores sejam presos quando não estejam
presentes os ditames dos arts. 171 e 172 do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente)–
em flagrante delito ou mediante ordem judicial – “não é hora de
recuar”, asseverando que voltará a abordar e deter menores que estejam
nos ônibus indo para a praia em situação de aparente ilegalidade (veja aqui e aqui) ou em suposta vulnerabilidade.
Os
discursos proferidos pelos representantes da sociedade civil fomentam
na mesma não só o fator medo, um dos instrumentos de controle da
sociedade. Os seguidores alienados compactuam com Maquiavel: para que um
fim seja alcançado, os meios adotados pouco importam. Adiciona-se ao
medo outro sentimento: a insegurança, protagonizada pelos que possuem
menor poder econômico e que, aparentemente, poderão cometer delitos
patrimoniais ou de lesão corporal. Tais sentimentos reverberam nos
“cidadãos de bem” como um sinal dissonante, formando uma preocupante
estrutura baseada em interpretações que estão culminando em um estado de
exceção permanente, (AGAMBEN, Giorgio. Meios sem fim: notas sobre a política,
2015), onde, resumidamente, o autor diz que o conceito de Povo sempre
foi forjado, posto que o mesmo sempre pressupôs sentido duplo, pois,
quando da Revolução Francesa, período em que ocorreu a promulgação da
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, claramente optaram por um
conceito de Povo fictício, onde existiriam homens e cidadãos, sujeitos
distintos no ordenamento político-jurídico da época.
Como se
ainda permanecesse tal revolução, que literalmente transformou todo o
sistema político-jurídico à época, ainda que com algumas alterações, até
os dias de hoje, outros conceitos não tão bons também foram mantidos,
como o eterno duplo conceito de Povo. Digo aqui que sempre há uma
parcela do Povo que é selecionada pelo poder político-jurídico para ser
excluída. Essa exclusão sempre se fez presente na história do mundo.
Basta lembrar brevemente da existência dos guetos, dos campos de
concentração, das favelas dentre outros diversos locais de exclusão.
Todo
o estado de constante exceção, seletividade e higienismo, que permanece
naturalmente no sistema político-jurídico vigente, faz com que
representantes políticos como os aqui citados, nunca solitários estre os
seus neste empreitada, sejam acompanhados por grande parte da sociedade
manipulável, que, enfeitiçada pelo medo, tenta de alguma forma
resguardar sua segurança psicológica e material. Assim, respostas
deturpadas geram evidente desrespeito aos três poderes, distintos, mas
harmônicos entre si (Legislativo, Executivo e Judiciário). Reforçando a
consequência, a já citada declaração de que, mesmo com uma decisão do
Judiciário, o chefe do Executivo carioca continuará, conforme também
confirmado pelo seu Secretário de Segurança, Sr. José Mariano Beltrame (leia),
executando prisões arbitrárias em desfavor dos jovens das favelas
cariocas para impedi-los de irem às praias onde supostamente realizarão
arrastões, assim como é perceptível que a sociedade cogita reagir aos
arrastões de forma anárquica conforme pode ser visto nas seguintes
matérias publicadas na internet.
Assim,
tendo em vista a nítida presença de um estado de exceção permanente,
onde, em grande parte, pessoas de baixa renda e moradoras de áreas
excluídas sempre saem prejudicadas na relação, devemos questionar a nós
mesmos quando venceremos nossas mentes pequenas para a liberdade da
vida, posto que tão somente quando entendermos que não só jovens da
periferia cometem delitos ou que não só pessoas de baixa renda jogam
copos cheios de xixi nos outros dentro dos estádios, partindo do
princípio que somos todos iguais e todos temos o mesmo destino, qual
seja a morte, não há porque mantermos em nosso sistema e em nossas vidas
um conceito falso como o de Povo, que diariamente forja liberdades e
cria exclusões, muito menos acreditando que fazendo justiça com as
próprias mãos resolveremos o problema.
O que deve ser discutido
amplamente não são os eventos esporádicos de arrastões nas praias ou os
xixis nos estádios, mas sim as causas dos mesmos, os deveres nunca
cumpridos pelos agentes políticos, assim como a necessidade de
investirmos em educação de base séria e crítica para que, quem sabe, com
o tempo, possamos diminuir a falta de educação existente e persistente
na sociedade, não só carioca, mas como em toda a sociedade brasileira. A
classe política e de segurança devem sim, agir organizada e
inteligentemente para reduzir ou eliminar a possibilidade de tais
incidentes sem que garantias fundamentais sejam aviltadas.
Enquanto
não for compreendido que aqueles que detêm o poder são os mesmos
prejudicam milhões como uma canetada só, que mantêm todo esse sistema
excludente, bem como enquanto não entendermos que somos também
responsáveis pela manutenção desse sistema de exceção, enquanto não
começarmos a refutar todo e qualquer tipo de autoritarismo, se o medo
que nos domina não virar contra os detentores do poder de oprimir, que
estão sujeitos à manifestações e desobediências nossas que tenham
intuito de exigir aquilo que é dever do Estado e direito de um Povo
realmente único, nada mudará. Compete a nós exercer a mudança,
democraticamente. Esse é o nome do jogo que rege as regras vigentes.
Até
quando aceitaremos tribunais de rua conforme os aqui citados? Não são
tribunais de rua as ações dos agentes políticos, de segurança, da mídia e
por grande parte dos “cidadãos de bem”? Ignorância? Legítima defesa?
Quanto aos leitores espero suas posições, suas respostas. Para mim,
demonstra nitidamente um poder preguiçoso, má-fé de muitos e crime, além
de falta de humanidade.
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