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segunda-feira, 6 de março de 2017

Transplante e a disposição do próprio corpo, segundo a legislação brasileira (Lei nº 9.434/97)

O primeiro transplante que se tem notícia está imortalizado no quadro do artista Fra Angélico, a pintura é a imagem do presente artigo, no qual os santos Cosme e Damião transplantam a perna de um etíope negro morto, no diácono Justiniano, enquanto ele dormia. Em relação a legislação brasileira há proteção a integridade física da pessoa viva, conforme preconizado pelo artigo 13 do Código Civil:
“Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes.
Parágrafo único. O ato previsto neste artigo será admitido para fins de transplante, na forma estabelecida em lei especial.” (ressaltei)
Ou seja, a regra geral é a proibição de ato de disposição do próprio corpo quando importar diminuição permanente da integridade física, porém há duas exceções:
  • 1) não havendo diminuição permanente da integridade física o ato é permitido, exemplo, tatuagem e piercing; e
  • 2) se permite o ato de disposição corporal, mesmo havendo diminuição permanente da integridade física, quando há exigência médica, por exemplo, amputação e transplante.

Vale ressaltar que a diminuição permanente do corpo humano não se refere somente ao corpo todo, mas também as partes destacáveis do corpo, como por exemplo, placenta. Nessa linha de pensamento, caso interessante analisado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) foi o da cantora mexicana Glória Trevi, que ficou grávida enquanto estava na carceragem da Superintendência Regional da Polícia Federal no Distrito Federal e não autorizou exame de DNA em sua placenta. Nesse caso específico, o Supremo decidiu por dez dos onze ministros, sendo vencido o Ministro Marco Aurélio, que fosse realizado exame de DNA para descobrir a paternidade de Angel Gabriel, o filho da cantora mexicana Glória Trevi. O entendimento da maioria do STF foi que o interesse público em esclarecer as circunstâncias da gravidez da artista é maior que o direito à intimidade garantida pela Constituição, segue a ementa do julgado:
“EMENTA: - Reclamação. Reclamante submetida ao processo de Extradição nº 783, à disposição do STF. 2. Coleta de material biológico da placenta, com propósito de se fazer exame de DNA, para averigüação de paternidade do nascituro, embora a oposição da extraditanda. 3. Invocação dos incisos X e XLIX do art. , da CF/88. 4. Ofício do Secretário de Saúde do DF sobre comunicação do Juiz Federal da 10ª Vara da Seção Judiciária do DF ao Diretor do Hospital Regional da Asa Norte - HRAN, autorizando a coleta e entrega de placenta para fins de exame de DNA e fornecimento de cópia do prontuário médico da parturiente. 5. Extraditanda à disposição desta Corte, nos termos da Lei nº 6.815/80. Competência do STF, para processar e julgar eventual pedido de autorização de coleta e exame de material genético, para os fins pretendidos pela Polícia Federal. 6. Decisão do Juiz Federal da 10ª Vara do Distrito Federal, no ponto em que autoriza a entrega da placenta, para fins de realização de exame de DNA, suspensa, em parte, na liminar concedida na Reclamação. Mantida a determinação ao Diretor do Hospital Regional da Asa Norte, quanto à realização da coleta da placenta do filho da extraditanda. Suspenso também o despacho do Juiz Federal da 10ª Vara, na parte relativa ao fornecimento de cópia integral do prontuário médico da parturiente. 7. Bens jurídicos constitucionais como "moralidade administrativa", "persecução penal pública" e "segurança pública" que se acrescem, - como bens da comunidade, na expressão de Canotilho, - ao direito fundamental à honra (CF, art. X), bem assim direito à honra e à imagem de policiais federais acusados de estupro da extraditanda, nas dependências da Polícia Federal, e direito à imagem da própria instituição, em confronto com o alegado direito da reclamante à intimidade e a preservar a identidade do pai de seu filho. 8. Pedido conhecido como reclamação e julgado procedente para avocar o julgamento do pleito do Ministério Público Federal, feito perante o Juízo Federal da 10ª Vara do Distrito Federal. 9. Mérito do pedido do Ministério Público Federal julgado, desde logo, e deferido, em parte, para autorizar a realização do exame de DNA do filho da reclamante, com a utilização da placenta recolhida, sendo, entretanto, indeferida a súplica de entrega à Polícia Federal do "prontuário médico" da reclamante.” (destaquei)
(Rcl 2040 QO, Relator (a): Min. NÉRI DA SILVEIRA, Tribunal Pleno, julgado em 21/02/2002, DJ 27-06-2003 PP-00031 EMENT VOL-02116-01 PP-00129)
Assim, a violação da integridade física chama-se no meio jurídico de dano estético, que não exige que a sequela seja permanente e o quantum indenizatório poderá variar, conforme entendimento expresso no REsp nº 575.576/PR, exponho parte do voto do Ministro Relator:
“A autora foi vítima de acidente quando fazia compras em supermercado, pelo desmoronamento de caixas de produtos mal empilhadas, sofrendo traumatismo na região da bacia, o que a obrigou a internação hospitalar, porém sem padecer de seqüela permanente ou deformidade. Não foi realizada prova pericial, apenas colhida a oral, em audiência.” (ressaltei)
Importante ser destacado que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) admite a cumulação do dano estético e dano moral, sendo este o teor da Súmula nº 387:
  • “Súmula 387 STJ: É lícita a cumulação das indenizações de dano estético e dano moral.”

Todavia, feito esse pequeno adendo, voltamos ao assunto do presente artigo, o primeiro transplante realizado no Brasil foi de córneas no ano de 1954. Por sua vez, os transplantes de fígado, coração e rins foram todos feitos em 1968.Valoroso informar que transplante de órgãos humanos não se encaixa no conceito de doação, pois não tem transferência patrimonial, e sem a transferência patrimonial não é doação. Todo presente é doação e uma vez consentido não cabe devolução. O transplante de órgãos e tecidos pode ser post mortem ou inter vivos, ou seja, o transplante post mortem consiste na retirada de órgãos e tecidos de pessoa falecida, dependendo da autorização em vida do doador (de cujus) ou de seu cônjuge ou parente, prevalecendo à vontade do doador e não da sua família; por sua vez, o transplante inter vivos só é permitida em caso de órgãos duplos (rins), partes que se regeneram (fígado) ou tecido, não podendo haver risco a vida, saúde ou deformação ao doador.
Carta Magna em seu artigo 199§ 4º, assevera que lei irá dispor sobre as condições e requisitos em relação a transplante:
  • “Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada.
  • § 4º A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização.” (realcei)

Destarte, atualmente a lei específica em vigor no Brasil é a lei nº 9.434/97, de 4 de fevereiro de 1997, que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fim de transplante e tratamento. Logo, a legislação em vigor prescreve alguns requisitos para o transplante das pessoas vivas (inter vivos), que são:
1) pessoas da mesma família, até o quarto grau, não sendo da mesma família deve haver autorização: a autorização deve ser feita preferencialmente por escrito e na presença de duas testemunhas, por pessoa capaz, especificando o órgão, tecido ou parte do seu corpo que será retirado.
  • “Art. 9o É permitida à pessoa juridicamente capaz dispor gratuitamente de tecidos, órgãos e partes do próprio corpo vivo, para fins terapêuticos ou para transplantes em cônjuge ou parentes consangüíneos até o quarto grau, inclusive, na forma do § 4o deste artigo, ou em qualquer outra pessoa, mediante autorização judicial, dispensada esta em relação à medula óssea.
  • § 4º O doador deverá autorizar, preferencialmente por escrito e diante de testemunhas, especificamente o tecido, órgão ou parte do corpo objeto da retirada.” (relevei)

2) gratuidade, não pode haver cobrança: constitui crime a compra de órgãos, tal previsão já é expressa no próprio artigo 199§ 4º, da CF/88.
  • “Art. 1º A disposição gratuita de tecidos, órgãos e partes do corpo humano, em vida ou post mortem, para fins de transplante e tratamento, é permitida na forma desta Lei.” (evidenciei)
  • “Art. 15. Comprar ou vender tecidos, órgãos ou partes do corpo humano:
  • Pena - reclusão, de três a oito anos, e multa, de 200 a 360 dias-multa.”
  • “Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada.
  • § 4º A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização.” (realcei)

3) que os órgãos sejam dúplices ou regeneráveis:
  • “Art. 9o É permitida à pessoa juridicamente capaz dispor gratuitamente de tecidos, órgãos e partes do próprio corpo vivo, para fins terapêuticos ou para transplantes em cônjuge ou parentes consangüíneos até o quarto grau, inclusive, na forma do § 4o deste artigo, ou em qualquer outra pessoa, mediante autorização judicial, dispensada esta em relação à medula óssea.
  • § 3º Só é permitida a doação referida neste artigo quando se tratar de órgãos duplos, de partes de órgãos, tecidos ou partes do corpo cuja retirada não impeça o organismo do doador de continuar vivendo sem risco para a sua integridade e não represente grave comprometimento de suas aptidões vitais e saúde mental e não cause mutilação ou deformação inaceitável, e corresponda a uma necessidade terapêutica comprovadamente indispensável à pessoa receptora.” (realcei)

4) intervenção do Ministério Público (MP), promotoria da saúde, a lei apenas exige que o promotor seja comunicado, não precisa esperar o fim do procedimento, e não se aplica para transplante de sangue, sêmen, óvulo e leite materno que não precisam observar os requisitos:
  • “Art. 1º A disposição gratuita de tecidos, órgãos e partes do corpo humano, em vida ou post mortem, para fins de transplante e tratamento, é permitida na forma desta Lei.
  • Parágrafo único. Para os efeitos desta Lei, não estão compreendidos entre os tecidos a que se refere este artigo o sangue, o esperma e o óvulo.”

5) consentimento expresso do receptor inscrito em lista única de espera:
  • “Art. 10. O transplante ou enxerto só se fará com o consentimento expresso do receptor, assim inscrito em lista única de espera, após aconselhamento sobre a excepcionalidade e os riscos do procedimento.” (ressaltei)
  • Ressalta-se também que a Lei do Transplante (lei nº 9.434/97) não permite: a publicação de anuncio de estabelecimentos autorizados a realizar transplante; apelo público para doação para determinada pessoa; e apelo para arrecadação de fundos, verbis:
  • “Art. 11. É proibida a veiculação, através de qualquer meio de comunicação social de anúncio que configure:
  • a) publicidade de estabelecimentos autorizados a realizar transplantes e enxertos, relativa a estas atividades;
  • b) apelo público no sentido da doação de tecido, órgão ou parte do corpo humano para pessoa determinada identificada ou não, ressalvado o disposto no parágrafo único;
  • c) apelo público para a arrecadação de fundos para o financiamento de transplante ou enxerto em beneficio de particulares.
  • Parágrafo único. Os órgãos de gestão nacional, regional e local do Sistema único de Saúde realizarão periodicamente, através dos meios adequados de comunicação social, campanhas de esclarecimento público dos benefícios esperados a partir da vigência desta Lei e de estímulo à doação de órgãos.” (destaquei)
  • “Art. 20. Publicar anúncio ou apelo público em desacordo com o disposto no art. 11:
  • Pena - multa, de 100 a 200 dias-multa.”
  • A lei também prevê o crime com pena de detenção para quem não respeitar o consentimento expresso do receptor ou a lista única de espera:
  • “Art. 18. Realizar transplante ou enxerto em desacordo com o disposto no art. 10 desta Lei e seu parágrafo único:
  • Pena - detenção, de seis meses a dois anos.”

A Lei do Transplante prevê alguns requisitos que devem ser observados para a realização do procedimento médico, sendo aplicável a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil, sem distinção de qualquer natureza, conforme estipulado pelo artigo caput, da Constituição Federal, estando proibida a comercialização, promoção, publicação de anuncio, arrecadação de fundos, intermediação e facilitação de órgãos e tecidos.






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