Em 1866, por encomenda, o francês Gustave Courbet pintou um quadro chamado “A origem do mundo”. Na obra, retratada com algum realismo, vê-se uma mulher nua com as coxas abertas. Consta nos livros que, até passar a ser exposta no museu D´Orsay, em Paris, nos anos 90, todos os seus colecionadores – inclusive o psicanalista Jacques Lacan – a teriam mantido escondida, em um quarto reservado ou obscurecida por um véu. Ainda hoje, é comum que os freqüentadores do museu olhem a imagem com algum incômodo.
Essa pequena história ilustra o quão perturbador é, aos olhos gerais, o corpo feminino, caso não esteja coberto, ou, se despido, caso ocupe algum lugar diferente daquele destinado ao gozo do olhar masculino. Uma mulher em páginas de revistas masculinas ou em um filme de conteúdo adulto, por exemplo, muito bem serve a esse princípio, enquanto uma mulher nua por sua única e aparente vontade desperta desde logo uma objeção – mesmo que esteja, digamos, amamentando um bebê em público.
O corpo da mulher, assim, não é seu para que dele disponha como queira. É, ao contrário, propriedade do patriarcado, que definirá quando e em que circunstâncias deverá ser exposto, assim como definirá se deverá engravidar e como deverá parir. Não é outra a razão de o aborto ser um tema em disputa. Se a mulher é dona absoluta do seu corpo, pode, inclusive, interromper uma gestação. Se não é, não é a ela quem cabe essa decisão.
Seguindo essa linha de raciocínio, podemos considerar que há os corpos obedientes e há os corpos insurretos. Os primeiros submetem-se aos regramentos de conduta pré-estabelecidos e acabam por ser acolhidos como belos, recatados e do lar. Os últimos incomodam com o exercício de tanta liberdade. É evidente, assim, que haverá distintos juízos de valor para cada um dos casos, acrescidos, ainda, de recortes de classe, raça e LGBTfobia.
Ora, os corpos que têm valor não podem ser violados. Já aqueles que não têm, ainda que violados, não serão considerados objeto de estupro. É disso que trata, precisamente, a cultura do estupro. O termo, cunhado por feministas americanas nos anos 70 (rape culture), procura dar conta do fenômeno social de aceitação e replicação de conceitos que normalizam o estupro com base, justamente, em construções sociais sobre gênero e sexualidade. Ou seja, se a mulher deve se comportar de determinadas formas, o seu valor e o valor do seu corpo estão atrelados, necessariamente, ao seguimento de padrões morais relativos à sexualidade.
Se há violação, portanto, a culpa é da mulher, que, ao vestir-se de um modo ou de outro, ao estar em um lugar ou outro, acompanhada de determinada pessoa ou sozinha, merece o que lhe acometeu, já que teria tido uma conduta desviada e excepcional.
Os dados a respeito do assunto, porém, desmentem a falácia. Nos EUA, o Centro de Controle e Prevenção de doenças estima que uma a cada cinco mulheres será estuprada em algum momento da vida, assim como que ¾ das vítimas serão estupradas por homens que as conhecem, e não por um estranho em um beco escuro. No Brasil, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública estima que apenas sejam registrados 30 a 35% dos casos de estupro efetivamente havidos. Ainda assim, apenas com o que há de contabilizado, há um estupro a cada 11 minutos, sendo que a maioria, novamente, será praticada por conhecidos da agredida.
Mulheres sofrem assédio na rua e em casa, ouvem piadas misóginas, submetem-se a relacionamentos abusivos, têm o corpo violado. E enquanto não forem tidas como sujeitas plenas e donas de tudo que as compõe, sua própria humanidade também é atacada. Mas houve e haverá resistência. Mulheres livres também sabem lutar.
- Laura Rodrigues Benda foi Juíza do Trabalho do TRT da 15ª Região e atualmente é Juíza do Trabalho do TRT da 2ª Região. É diretora de assuntos legislativos e institucionais da AMATRA 2 (Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 2ª Região - biênio 2016/2018) e membra da AJD (Associação Juízes para a Democracia). Gosta de política, de cinema e de gastronomia. Acredita que a luta é coletiva e que o amor é revolucionário.
Compõe a coluna Sororidade em Pauta, em conjunto com as magistradas Célia Regina Ody Benardes, Daniela Valle da Rocha Müller, Elinay Melo, Fernanda Orsomarzo, Gabriela Lenz de Lacerda, Juliana Castello Branco, Laura Rodrigues Benda, Patrícia Maeda, Renata Nóbrega e Sofia Lima Dutra.
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