Por Guilherme Boaro:
Há alguns institutos jurídico-penais que, apesar de possuírem substancial relevo para a dogmática penal, são muitas vezes colocados em inadequados espaços de intervenção. São temas que, em que pese estejam previstos juridicamente, acabam sendo colocados com extrema dificuldade quando “deslocados” do mundo do dever-ser (jurídico) para o mundo do ser (material). Isso é o que ocorre, por exemplo, com o conflito de deveres em direito penal, com as questões referentes ao consentimento do ofendido, bem como com a objeção de consciência em direito penal, tema da coluna de hoje.
O direito à objeção de consciência possui fundamento no artigo 5º, inc. VI da Constituição Federal e pode ser observado nos casos em que o agente, uma vez cumprida a decisão de consciência, responde a um dever que compromete a sua inteira personalidade; enquanto, pelo contrário, o não cumprimento gera, inevitavelmente, a sua profunda e irremediável destruição. Dito de outra forma, a Constituição Federal garante que o Estado não intervirá, mesmo em casos com consequências penalmente relevantes, na liberdade de crença dos sujeitos, é dizer, naquilo que permite às pessoas o gozo pleno de sua existência. Trata-se aqui, portanto, da forma mais profunda do ser do homem, daquilo que permite às pessoas o pensamento livre e um modo de viver adequado às suas respectivas condições existenciais, sejam elas de cunho filosófico, religioso, psicológico, moral, social, etc.
A discussão a respeito dos fundamentos e limites da objeção de consciência em direito penal teve seu ápice no plano jurisprudencial brasileiro no âmbito do julgamento doHabeas Corpus 268.459, no Superior Tribunal de Justiça, de relatoria da Ministra Maria Thereza de Assis Moura. No julgamento, realizado no ano de 2014, discutiu-se sobre a responsabilização penal de uma mãe e um pai que, por serem Testemunhas de Jeová, não permitiram que a filha menor, acometida por uma grave doença, recebesse transfusão de sangue. A não realização da transfusão acabou por gerar o falecimento da menina e, consequentemente, a imputação de homicídio doloso aos pais. Veja-se, mais detalhadamente, a descrição do caso extraída do acórdão:
“A vítima sofria de anemia falciforme e, na madrugada do dia 21 de julho de 1993, foi internada no Hospital XXX, por apresentar agravamento do seu estado de saúde em consequência dessa moléstia. Foi submetida a exames clínicos, onde se constatou uma baixíssima quantidade de componentes hemáceos, o que exigia, com urgência, uma transfusão sanguínea. Este diagnóstico foi apresentado aos pais da vítima, que apesar de todos os esclarecimentos feitos por médicos do Hospital, recusavam-se a permitir a transfusão de sangue na paciente, invocando preceitos religiosos da seita Testemunhas de Jeová, do qual eram adeptos. O quadro da paciente agravava-se cada vez mais e uma das médicas do Hospital estava prestes a conseguir a autorização do pai da adolescente, XXX, para que se fizesse o procedimento. Ocorre que a genitora da vítima, XXX, comunicou o fato a XXX, médico e adepto da mesma seita, em busca de orientação como proceder. Este compareceu ao Hospital e ostentado a condição de membro da ‘Comissão de Ligação com Hospitais das Testemunhas de Jeová’, influenciou os genitores da vítima a não concordar com a transfusão e intimidou os médicos presentes, ameaçando processá-los judicialmente caso efetuassem-na contra a vontade dos pais da paciente. Durante todo o tempo, os genitores da adolescente foram alertados que não havia outra alternativa à transfusão, caso desejassem salvar a vida da filha. Em resposta, declaravam que preferiam ver a filha morta a deixar ela receber a transfusão, pois se isso ocorresse ela não iria para o Paraíso. XXX (pai da menina) chegou a assinar por escrito uma declaração (fls. 116) onde assume qualquer responsabilidade decorrente da recusa da transfusão sanguínea. Enfim, após inúmeras tentativas frustradas de convencimento dos pais da vítima, esta veio a falecer entre 4h10min a 4h30min do dia 22 de julho de 1993, em consequência de assistolia ventricular, crise vásculo oclusiva e anemia falciforme (fls. 73). Com tal conduta, os denunciados, para supostamente salvaguardar a salvação espiritual da vítima, impediram o procedimento médico adequado ao caso, concorreram para a sua morte e assumiram o risco pelo triste evento.”
No âmbito do julgamento, assim dizendo, decidiu-se, nos termos do voto da Ministra Relatora, pela concessão da ordem de Habeas Corpus no sentido de reconhecer a atipicidade do comportamento imputado aos pais. Em que pese considerarmos acertada a decisão proferida – no mérito, em razão da sensibilidade em valorar-se como legítima a objeção de consciência dos pais –, algumas questões de ordem técnica são dignas de maior reflexão.
Antecipando, em alguma medida, a conclusão do presente escrito, há que se considerar que a decisão proferida deveria, para assumir maior consistência técnica, ter situado de maneira mais clara a ressonância que a objeção de consciência pode gerar nas categorias jurídico-penais (tipicidade, ilicitude e culpabilidade). Veja-se.
A decisão é no sentido de reconhecer a atipicidade da conduta imputada aos pais. Entretanto, a Ministra Relatora fundamenta seu voto com base no pensamento de Claus Roxin, o qual, ao debruçar-se sobre tal temática, desenvolve um entendimento em que a tipicidade do fato só será afastada nos casos em que a objeção de consciência é suscitada diante de situações bem específicas: não existirá qualquer limite à liberdade de consciência sempre que as finalidades legislativas possam ser alcançadas, apesar do fato, através de uma alternativa que se apresenta à consciência individual de maneira neutra. Nessas hipóteses existe uma total possibilidade de harmonização dos bens ou interesses em conflito (o da liberdade de consciência e o bem jurídico tutelado pela norma penal), inexistindo, portanto, tipicidade.
Nos casos em que isso não ocorre, tal como no do referido acórdão, afirma Roxin que se deve negar aresponsabilidade(situada por ele como um elemento da culpabilidade) do agente, de modo a compreender-se pela desnecessidade de aplicação da pena em seus fins preventivos e excluindo-se, devido a isso, aculpabilidade. Nesse ponto, portanto, há uma incongruência na decisão que, ao menos se analisado sob uma perspectiva da dogmática penal, é inaceitável.
Compreende-se aqui, contudo, que o problema da objeção de consciência em direito penal deve ser solucionado de forma diversa da proposta por Roxin. Não é a ausência de necessidade de punição que deve justificar a exclusão da culpabilidade, mas algo mais primordial para o Estado Democrático de Direito: adignidade humana é que é afetada em caso de aplicação da pena criminal ao agente objetor de consciência (assim entende, por exemplo, Figueiredo Dias).
Ainda, no que diz respeito às causas legais de exclusão da culpabilidade (inimputabilidade, falta de consciência da ilicitude e inexigibilidade de conduta diversa), tem-se, na linha do pensamento de Figueiredo Dias, que a solução mais adequada deve ser o reconhecimento da inexigibilidade de conduta diversa em razão do estado de necessidade exculpante do agente que alega objeção de consciência. Isso porque o sujeito conhece da ilicitude do fato, mas ainda assim o realiza por razões de uma crença profunda, isto é, por condições que o permitem ter uma existência digna.
Há que se concluir, assim, que a decisão proferida no âmbito do Habeas Corpus nº 268.459, em que pese deva ter reconhecido algum mérito por ter conferido importante relevo ao direito à objeção de consciência, deveria ter sido fundamentada a partir de uma base dogmática mais densa e congruente, a fim de possibilitar uma construção jurídico-penal adequada à ciência penal contemporânea.
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