Em março, ao comentar o quadro da segurança pública no Rio de
Janeiro, o secretário José Mariano Beltrame afirmou que o inimigo número
um no combate ao crime no estado era o fuzil. Ele se referia ao
armamento largamente utilizado pelas organizações criminosas, já tão
comumente retratado em imagens repetidas à exaustão na mídia sobre o
poder de fogo dos bandidos. A julgar pelos mais recentes destaques de
violência na capital fluminense, a visão do secretário abrange apenas
parte de um problema muito maior.
O ataque a um idoso em um ponto
de ônibus lotado, a morte de um ciclista na lagoa Rodrigo de Freitas, a
violência contra uma mulher nas proximidades do Fashion Mall, o roubo à
turista chilena na Glória e o desfile incessante de menores praticando
assaltos a qualquer hora no Aterro do Flamengo têm em comum outro
instrumento de ataque: a faca. Num raciocínio simplista, superficial e
aligeirado, poderia estar aí identificado um novo inimigo a ser
combatido, como, aliás, já sugerem enquetes com indisfarçável flerte
sensacionalista e até a OAB. É, porém, mais um erro crasso.
Combater
a faca, o instrumento de ataque agora em evidência, repete a lógica –
no caso, a falta dela – vista com o desarmamento, que retirou as armas
da sociedade civil, mas, como reconhece Beltrame, manteve o fuzil (e
tudo mais que queiram) com os criminosos. Por que seria diferente agora?
Não seria, por óbvio.
Se é para eleger responsáveis diretos pelo
desastre de nossa segurança pública, esqueça-se a faca. A culpa não é
dela, como nunca foi da arma de fogo, seja o revólver que defendia o
cidadão, seja o fuzil do traficante. Em qualquer caso de ação criminosa,
o culpado é quem age por trás do instrumento, quem puxa o gatilho,
desfere a facada, atira a pedra, dá a paulada ou espanca sua vítima. É o
agente que precisa ser combatido, não o meio que ele usa.
O
traço comum a qualquer desses ataques, ainda que variáveis sejam os
instrumentos, se estabelece num conceito que atua como cúmplice dos
agressores: a impunidade. É ela que aflora quando se esclarece menos de
10% dos nossos quase 60 mil homicídios por ano, a mesma que permite que
um menor suspeito de assassinato tenha quinze passagens por casas de
acolhimento, de onde sempre saiu no máximo em duas semanas. É igualmente
a que concede a criminosos uma inesgotável série de benefícios, como
indultos, “saidões” e afrouxamentos de regime, utilizados para reincidir
no crime em mais de 75% dos casos.
Juntando impunidade a um
modelo estrutural firmado na premissa de que a sociedade deve ser o mais
frágil possível, sem qualquer chance de autodefesa e na exclusiva
dependência de forças policiais deficitárias, o resultado não pode ser
outro além do caos. Seguimos numa maquete macabra, manipulados como
bonecos indefesos à espera do próximo ataque, contra o qual nada parece
poder ser feito. Um sistema autofágico, deteriorando a uma velocidade já
incalculável, enquanto se busca factoides para disfarçar as ruínas que
já nos cercam. E o que virá depois das facas?
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