No Distrito Federal, no dia 13/5/15 (dia da abolição da escravatura,
que ainda não acabou, evidentemente), o eletricista pobre e desempregado
Mário Ferreira Lima, que vive atualmente de Bolsa Família
(R$ 70), tentou subtrair 2 kilos de carne de um supermercado. Foi preso
e autuado em flagrante. O delegado fixou fiança (impagável, pelas
condições dele) de R$ 270. Nove empreiteiros (15 dias antes), que se
encontravam presos em Curitiba (PR), por força dos desvios de bilhões
apurados na Operação Lava Jato, foram liberados pelo STF (no dia
28/4/15) sem a fixação de nenhuma fiança. De quem não pode pagar nada o
sistema penal exige dinheiro para ser liberado (é ridículo isso, do
ponto de vista do valor justiça). De quem pode pagar tudo o sistema não
exige o pagamento de milhões em fiança. A irracionalidade e a
desproporcionalidade na aplicação da lei penal no Brasil (que não tem a
mínima consciência do que é igualdade de todos perante a lei) são
brutais. Nem sequer num bando de macacos (que os cientistas afirmam
serem nossos primos mais próximos – veja Yuval Noah Harari, Sapiens – Uma breve história da humanidade)
se vê tamanha injustiça (e incongruência). A cada dia que passa
mostramos que somos seres inteligentes e também, como diria Edgar Morin,
demens!
Mas por que as coisas funcionam assim no Brasil?
Porque, consoante nossos costumes e cultura (lamentavelmente ainda muito
desigual, racista, machista, patriarcalista, patrimonialista etc.),
somente quem rouba pouco é tratado como ladrão. Quem rouba muito
(sobretudo o patrimônio público) é tido como barão (ou senador ou
deputado ou governante ou presidente de grandes empresas ou alto
funcionário público etc.). Todos das classes dominantes (incluindo suas bandas podres) são tratados como cidadãos (porque são os donos do poder: pelo dinheiro, pelo status, pela hierarquia social etc.). Os membros das classes populares e marginalizadas são considerados “inimigos”. Uns poucos privilegiados pelo sistema são incluídos no rol dos “muy amigos” (por exemplo, quando um juiz segura um processo criminal para se alcançar a prescrição do crime desse “muy amigo”).
Algumas
frases (de autoria duvidosa) exprimem essa ideia: “Aos amigos os
favores, aos inimigos a lei” (Maquiavel); “aos amigos tudo, aos inimigos
a lei” (Getúlio Vargas). Ou seja: aos amigos os favores, incluindo os
que estão na própria lei (foro privilegiado, por exemplo), e aos
inimigos os seus dissabores, mesmo quando não seria o caso de
aplicá-los.
O eletricista Mário Ferreira Lima jamais deveria ter
sido “preso em flagrante”. Por força do princípio da insignificância,
amplamente reconhecido pela jurisprudência do STF, particularmente no HC
84.412-SP (convenhamos, 2 kilos de carne para um supermercado é algo de
ninharia), o que ele fez é fato atípico (não é crime). A
insignificância exclui a tipicidade material, logo, o crime. Isso
não significa que devemos concordar com seu deplorável comportamento
nem que ele não responda por nada. Mas entre uma reprimenda proporcional
(elaboração de um boletim de ocorrência, uma advertência verbal, o
desprazer de ser conduzido a um distrito policial etc.) e uma prisão em
flagrante, com fixação de fiança (a quem não pode pagá-la), há uma
distância enorme. A injustiça (a falta chocante de bom senso) foi tão
gritante que os próprios policiais se reuniram para pagar a fiança (e
ainda fizeram uma compra de supermercado para ele, quando constataram
sua absoluta miserabilidade). Nesses casos a autoridade policial deve
elaborar um mero boletim de ocorrência para registrar os fatos. Em juízo
tudo será arquivado (por se tratar de fato penalmente irrelevante).
Falta lei no Brasil para regular a insignificância. Daí a aplicação
muitas vezes desarrazoada e enviesada da lei penal (que é mais
reveladora do que tudo sobre a legitimação das desigualdades, que
permite a muitos que estão “no andar de cima” licenças para roubar quase
sempre impunemente).
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