Por Mariana Py Muniz Cappelari.
É certo que para Zaffaroni[1] a
Criminologia não nasce apenas quando lhe é outorgada a pecha da
cientificidade, mas muito antes disso, já na Inquisição, com os
demonólogos mais precisamente. No entanto, os manuais dão conta de que a
Criminologia se torna ciência, pelo método então adotado, do empirismo,
com o positivismo criminológico e a chamada Escola Positiva Italiana, a
qual tinha por expoentes mais conhecidos: Lombroso, Ferri e Garófalo.
De acordo com Anitua, [2] o
positivismo criminológico estaria marcado pela cientificidade e pelo
organicismo (a ideia de que a sociedade era um todo orgânico). É que à
época do seu surgimento, quando da instauração de uma nova ordem social
burguesa industrial, a teoria do contrato social saudada pelos
clássicos, aliada a função preventiva da pena, já não era mais
suficiente à legitimação dessa nova ordem, por isso o desenvolvimento da
ideia de que o fundamento do castigo estaria na conservação social e
não na mera utilidade, antepondo os direitos dos ‘honrados’ aos direitos
dos ‘delinquentes’.[3]
Desde então laboramos com a máxima do cidadão de bem versus bandido,
dicotomizando a pessoa humana, como se isso fosse possível! E vejam que
estamos falando do século XIX!
Daí também porque a Escola
Positiva Italiana sobrepunha a rigorosa defesa da sociedade frente aos
direitos dos indivíduos, diagnosticando o mal do delito com simples
fatores patológicos e individuais, os quais exculpam de antemão a
sociedade e lançam a ideia de ‘homem delinquente’, um ente diferenciado
dos seres humanos normais, não só porque padece de uma série de estigmas
degenerativos comportamentais, psicológicos e sociais, tal como
acentuava Lombroso; mas também porque esse mesmo delinquente, segundo
Ferri, seria um agente infeccioso do corpo social do qual era preciso
ser separado, com o que convertia os juízes em leucócitos sociais.[4]
Não sem razão Garófalo irá defender a pena de morte em determinados
casos, pontuando que do mesmo modo que a natureza elimina a espécie
(influência da seleção natural) que não se adapta ao meio, o Estado
deveria eliminar o delinquente que não se adapta à sociedade e às
exigências de convivência.
Sabe-se, também, que muito antes
disso, mais precisamente quando o Estado toma para si o monopólio da
violência e o exercício do Poder Punitivo, retirando das mãos do
particular a vingança privada; para além do confisco da vítima, tinha-se
por propósito a racionalização da lei de Talião: o olho por olho, dente
por dente; com o intuito de evitar-se que o mais forte sempre
prevalecesse em detrimento do menos forte, ou do mais fraco, o que seria
motivo de injustiça.
Ocorre que ainda padecemos dessas
influências, mais do que se possa imaginar, talvez por isso não seja sem
razão a máxima de Zaffaroni no sentido de que a Criminologia mais se
assemelha a um parque jurássico, pois no seu interior convivem as mais
diversas teorias e também marcos teóricos, muitos transvestidos apenas
pelo prefixo de ‘neo’, que significa novo, um novo velho, diríamos.
A
semana passada nos deu mais um exemplo de que para alguns a defesa da
‘sociedade’ se sobrepõe ao direito do indivíduo, esse visto como um
agente infeccioso do corpo social, o qual precisa ser extirpado desse
meio, até sendo justificável nesse contexto a sua própria morte, que se
não é realizada pelo Estado (ainda que não formalmente), conforme
defendia Garófalo, deve, então, se dar pela sua própria comunidade, ou
melhor, pelos seus próprios pares. Tal é o que se deu no Maranhão,
quando Cleidenilson Pereira da Silva foi morto, em evidente linchamento,
por tentar roubar um bar, na companhia de um adolescente, o qual não
morreu também, pois segundo noticiaram os jornais, após as primeiras
agressões de populares, teria se fingido de morto para sobreviver.
Para
além da barbárie que esses episódios encerram, os quais se tornam cada
vez mais corriqueiros em solo brasileiro e nos colocam mais próximos do
medievo do que da evolução social e civilizatória; o fato é que também
deveriam eles servir a nos fazer refletir sobre a existência do direito
penal em si.
Como assim? Ora, já disse acima, em outras palavras,
que o direito penal surge com o monopólio por parte do Estado da
violência e do Poder Punitivo e com o intuito de igualar o forte ao
fraco, vedando e evitando a vingança privada. Ocorre que a realidade
posta, conforme referido acima também, nos dá prova é da influência do
passado, não por menos suscitamos o cotejo com a Escola Positiva
Italiana, abrindo, assim, espaço ao discurso abolicionista penal. O que
até poderia ser considerado um contrassenso, mas não o é.
Explico. De acordo com Shecaira, [5]
para os abolicionistas o delito é uma realidade construída, já que
resulta de uma decisão humana, sendo a lei quem por último irá ditar o
que é crime e quem é seu criminoso. Assim, fica fácil abolir o crime,
pois já vivemos em uma sociedade sem direito penal, segundo eles, embora
sequer percebamos isso. Vejamos alguns dos seus porquês. Trabalhamos
com uma cifra negra de criminalidade que não conhecemos e que não chegam
aos números oficiais; o sistema penal é anômico, uma vez que suas
normas não cumprem as funções esperadas, eis que não protegem a vida, a
propriedade, as relações sociais, sequer conseguem evitar o cometimento
de novos delitos; o sistema é seletivo e estigmatizante, cria e reforça
desigualdades, sendo o maior exemplo disso quem hoje compõe a massa
carcerária brasileira, aliás, os últimos dados dizem com jovens, pobres e
negros; o sistema é burocrata, não por menos é banalizador; o sistema
concebe o homem como um inimigo de guerra, o qual deve ser caçado pelo
exército da repressão; a prisão é ilegítima, dados os efeitos da
prisionização e a violência em que se constitui; tratando-se o sistema
penal, nesse breve contexto, portanto, numa máquina para produzir dor
inutilmente.
Quando em pleno século XXI ainda presenciamos
pessoas sendo amarradas nuas a postes e agredidas até a morte com socos,
chutes, pedradas e garrafadas, o mínimo que poderíamos fazer, já que o
discurso humanitário, selado pelo direito internacional dos direitos
humanos, não mais comove a irracionalidade da vingança, era nos
questionar, aí já no âmbito do racional, de que direito penal falamos,
ou melhor, ainda é possível falar em direito penal, ou não sem razão os
abolicionistas estejam certos: já vivemos em uma sociedade sem direito
penal?
Fonte: Canal Ciências Criminais.
__________
[1] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A palavra dos mortos. Conferências de Criminologia Cautelar. São Paulo: Saraiva, 2012.
[2] ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Rio de Janeiro: Revan, 2008.[3] GOMES, Luiz Flávio; GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Criminologia. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
[4] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A questão criminal. Rio de Janeiro: Revan, 2013.
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