Encontra-se na pauta do STF do dia 13 de agosto a discussão sobre a
constitucionalidade da criminalização do porte de drogas para consumo
próprio (art. 28 da Lei 11.343/2006).
O
caso foi levado até o Supremo pela Defensoria Pública de São Paulo após
a condenação de um homem a dois meses de prestação de serviço à
comunidade por ter sido flagrado portando três gramas de maconha
(Repercussão Geral no Recurso Extraordinário 635.659/SP).
Não
será a primeira vez que o Supremo decide sobre o tema. No primeiro
julgamento (RE 430.105-9-RJ), ocorrido no ano de 2007, o relator,
ministro Sepúlveda Pertence, considerou o usuário de drogas como
criminoso. Afirmou o ministro:
De minha parte, estou convencido de que, na verdade, o que ocorreu foi uma despenalização, entendida como exclusão, para o tipo, das penas privativas de liberdade.O que houve, repita-se, foi uma despenalização, cujo traço marcante foi o rompimento - antes existente apenas com relação às pessoas jurídicas e, ainda assim, por uma impossibilidade material de execução (CF/88, art. 225, § 3º e L. 9.605/98, arts. 3º; 21/24 - da tradição da imposição de penas privativas de liberdade como sanção principal ou substitutiva de toda infração penal.
Na RGRE 635.659/SP que está na pauta para julgamento do STF discute-se se a conduta prevista no art. 28 da Lei 11.343/2006 ofende o princípio da intimidade e vida privada, direito expressamente previsto na CF, em seu art. 5º, X.
Se reconhecida a violação, também se encontra afetado importante
princípio do direito penal: princípio da ofensividade (ou lesividade).
De
acordo com o princípio da ofensividade, “só é relevante o resultado que
afeta terceiras pessoas ou interesses de terceiros. Se o agente ofende
(tão-somente) bens jurídicos pessoais, não há crime (não há fato
típico). Ex.: tentativa de suicídio, autolesão, danos a bens
patrimoniais próprios etc. É exatamente na transcendentalidade da ofensa
que reside o princípio da alteralidade (a ofensa tem que atingir
terceiras pessoas).”[1]
O tema envolve questões para além da
jurídica: o que fazer com o usuário de drogas? A grande maioria dos
estudos criminológicos conclui no sentido de que o usuário não deveria
nunca ser um problema do direito penal. Já no campo da política criminal
há correntes criminalizadoras (pena de prisão), despenalizadoras
(sanção penal, sem pena de prisão), liberalizantes (é um problema
individual de cada pessoa, tanto quanto o álcool e o fumo), de redução
de dano (é um problema de saúde pública, não penal) e terapêuticas (o
tratamento obrigatório seria o melhor caminho).
Do ponto de vista eminentemente penal, desde que entrou em vigor a Lei 11.343/2006, a doutrina (a ciência penal) discute a natureza jurídica do art. 28,
que eliminou a pena de prisão ao usuário. Isso significou
descriminalização (retirou a conduta do campo do direito penal) ou
somente de despenalização (eliminação da pena privativa de liberdade)?
Sobre o tema, venho manifestando-me desde a primeira edição da obra Lei de drogas comentada (2007) que se trata de descriminalização. Reproduzo abaixo o trecho que traz a fundamentação do meu ponto de vista:
“O
art. 28 não pertence ao Direito penal, sim, é uma infração do Direito
judicial sancionador, seja quando a sanção alternativa é fixada em
transação penal, seja quando imposta em sentença final (no procedimento
sumaríssimo da lei dos juizados). Houve descriminalização substancial
(ou seja: abolitio criminis).
Para dar sustentabilidade a essa tese podem ser invocados os seguintes argumentos:
(a) não obstante o art. 28 da Lei 11.343/2006
encontrar-se inserido no capítulo denominado “Dos crimes e das penas”,
em alguns dos dispositivos legais, quando se faz referência às
consequências a serem impostas ao usuário (art. 28, III, art. 28, § 1.º;
art. 28, § 6.º e art. 29), a mesma Lei fala em “medidas” ou “medidas
educativas”;
(b) duas das consequências previstas no art. 28
(advertência e encaminhamento a programas educativos) não possuem
nenhuma carga aflitiva, ao contrário, têm natureza puramente educativa. A
outra (prestação de serviço à sociedade) possui duplo caráter
(educativo e repressivo);
(c) nenhuma das consequências quando
aplicadas em razão de transação penal (art. 48, § 5.º) gera reincidência
ou antecedentes, ou seja, impostas em transação penal não geram nenhuma
consequência relacionada com o Direito penal;
(d) normalmente a
concretização de uma transação penal impede que outra seja feita no
lapso de cinco anos. Mas essa regra não vale para o caso do usuário, que
conta com disciplina própria e pode levar adiante várias transações
penais, mesmo dentro daquele período de cinco anos (art. 28, § 4.º);
(e)
havendo descumprimento da transação ou da sentença condenatória as
únicas medidas cabíveis são: admoestação verbal ou multa (art. 28, §
6.º). Isso evidencia, de modo patente, que todas as medidas impostas ao
usuário de drogas refogem da estrutura e da sistematização do Direito
penal;
(f) a qualquer tempo elas podem ser substituídas, ouvidos
o Ministério Público e o defensor (art. 27). Isso reforça o caráter
educativo ou ressocializador dessas medidas;
(g) a natureza
jurídica da sentença condenatória (no caso de não ter havido transação
penal) é idêntica à da proferida em ação de improbidade administrativa,
isto é, não se trata de sentença condenatória que produza efeitos
penais, sim, de sentença que gera outras consequências, típicas do
Direito judicial sancionador;
(h) o fato de a sentença ser
emanada de um juiz criminal não é suficiente para conduzir à conclusão
de que a sentença é de natureza penal. O juiz criminal não está impedido
de contar com competências em outras áreas. A Lei 11.340/2006
(Violência contra a mulher), com efeito, prevê a possibilidade de o
juiz criminal tratar de questões cíveis (no caso de medidas protetivas
de urgência), sem que isso venha a desvirtuar a natureza de suas
decisões (Lei 11.340/2006, art. 33);
(i) cada sentença possui os efeitos jurídicos que são dados pela lei ou pela Constituição.
No caso do usuário de drogas criou-se toda uma disciplina jurídica
específica, que diverge completamente do ordenamento jurídico geral;
(j)
a fixação da competência do JECrim em relação ao usuário de drogas é
ato de discricionariedade legislativa. Ela é razoável (já que deixa ao
encargo do judiciário a classificação uso/tráfico, de acordo com os
parâmetros estabelecidos no art. 28, § 2.º) e não contraria nenhuma
norma constitucional;
(l) concluindo tratar-se de posse de
drogas para o consumo pessoal, tendo em vista que não houve a
legalização da conduta, mas sim a sua descriminalização (abolitio
criminis), realmente devem ser estabelecidas consequências ao usuário,
as quais podem ser aceitas desde logo por ele (transação) ou
estabelecidas pelo magistrado (em sentença condenatória, de natureza sui
generis);
(m) em qualquer das hipóteses as consequências possíveis são de natureza educativa;
(n)
isso se constata facilmente quando se percebe que duas delas
(admoestação e encaminhamento a programas educativos) são voltadas
exclusivamente para o próprio usuário, na busca de fazer com que ele
possa superar a sua condição; a outra (prestação de serviço à
comunidade), ainda que não voltada diretamente para a reeducação do
usuário, possui, como já dito, natureza híbrida (cunho educacional e
cunho repressor). É importante destacar que a prestação de serviço deve
ser cumprida em local que se ocupe, preferencialmente, da prevenção do
consumo ou da recuperação de usuários e dependentes de drogas (art. 28, §
5.º);
(o) não obstante o art. 28 encontrar-se inserido em um
capítulo denominado “Dos crimes e das penas”, ele faz parte do Título
III da Lei, que trata “Das atividades de prevenção do uso indevido,
atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas”. As
medidas de repressão somente são encontradas no Título seguinte e são
dirigidas, exclusivamente, à produção e ao tráfico de drogas;
(p)
a preocupação com a prevenção, a atenção e a reinserção social do uso
indevido é a marca distintiva da nova Lei. Ela rompe com as anteriores
por tratar a fundo essas questões, dedicando, inclusive, a ela, trinta
dos seus setenta e cinco artigos;
(q) dentre tantos outros
aspectos preventivos, pode ser lembrado a criação do Sistema Nacional de
Políticas Públicas sobre Drogas – Sisnad, o qual não se coaduna com o
discurso anterior de “combate às drogas”. Até o nome que comumente
tem-se usado ao fazer referência à lei (“Nova Lei Antidrogas”)
encontra-se equivocado, já que a tônica, agora, no que se refere às
drogas, desloca-se do “combate” para privilegiar a prevenção;
(r)
a aplicação das medidas preventivas de não uso, retardamento do uso e
redução de danos previstas na Lei (arts. 20 a 26) são, por natureza,
incompatíveis com a ideia de criminalização do uso. O mesmo se diga em
relação ao tratamento. Várias dessas estratégias, para melhor alcançar
seus resultados, necessitam da colaboração do usuário, o que,
dificilmente se conseguiria, caso houvesse a rotulação do usuário como
criminoso. A partir de tal preocupação poder-se-ia evitar a
transformação do tóxico-dependente em tóxico-delinquente;
(s)
para que uma conduta venha a ser considerada criminosa ela deve ofender
de forma grave, concreta, intolerável e transcendental um bem jurídico
relevante (Luiz Flávio Gomes). É sabido que o usuário de drogas acaba
por alimentar o comércio ilícito. Se não houvesse demanda não haveria
oferta. No entanto, tal situação não é suficiente para se criminalizar o
uso. É fato também que as pessoas degradam o meio ambiente quando
utilizam determinados produtos (a utilização doméstica de inseticidas é
um bom exemplo). Isso, entretanto, não faz com que tal conduta venha a
ser objeto de criminalização;
(t) no caso do usuário de drogas,
seu comportamento causa uma afetação a um bem jurídico pessoal (saúde
individual). Nessas situações, o Direito penal não se encontra
legitimado a atuar, sob pena de desrespeito a direitos fundamentais da
pessoa humana, no caso, autonomia e liberdade. São as chamadas zonas
livres do Direito penal (Arthur Kaufmann), que se constituem em áreas de
contenção jurídico-penal, nas quais as decisões são deixadas ao
alvedrio das consciências dos envolvidos, impondo-lhes consequências
distintas das penais, quando violada a norma;
(u) tudo o que
acaba de ser exposto evidencia que em relação ao usuário de drogas
algumas consequências são pertinentes, de qualquer maneira elas hão de
se distanciar do direito repressivo, por lhes faltar requisito (s)
legitimador (es);[2]
(v) é razoável, assim, que o uso de drogas fique circunscrito ao âmbito do Direito judicial sancionador."[3]
Resta-nos aguardar o julgamento do Supremo. Depois disso, voltaremos a tratar do tema. Até lá.
Fonte:http://professoraalice.jusbrasil.com.br/artigos/218109635/maconha-3-gramas-no-supremo?ref=home
[1] GOMES, Luiz Flávio. BIANCHINI, Alice. Curso de direito penal: parte geral. V. 1, Salvador: Juspodvm, 2015.
[2] Cf. Bianchini, Alice. Pressupostos materiais mínimos da tutela penal. São Paulo: RT, 2002.
[3] BIANCHINI, Alice. CUNHA, Rogério Sanches. GOMES, Luiz Flávio. OLIVEIRA, William Terra de. Lei de drogas comentada. 6. Ed. Rev., atual. E ampl. São Paulo: RT, 2014, p. 129-132.
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