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segunda-feira, 15 de setembro de 2014

COMO O DIREITO PODE CHUTAR "DEUS".

     Aliar arte e direito é uma maneira de pensar o direito para além da normatividade e dos cursinhos esquizofrênicos de formação das carreiras públicas no direito. Para os objetivistas da quantidade (as faculdades de administração e de direito estão lotadas de gente assim…), a arte é fútil e inútil. O senso comum e sua cartilha de objetividades odeia arte. Aliás, tudo que não conhecemos ou não gostamos nos parece, a primeira vista, inútil. Tendemos a fazer um julgamento moral da nossa ignorância quando rechaçamos aquilo que nossa capacidade de compreensão ou de paciência não alcança. Mesmo assim, as alianças do direito com a literatura, com a música, com o cinema e com a poesia começam a pulsar tímidas. 

   A sopa de letrinhas do direito agora tem imagens, sons e um gosto melhor. Por falar em sopa, visto exclusivamente como normatividade, o direito é como aquelas sopas de hospital: sem gosto e aguado. O melhor ingrediente das sopas de hospital são as enfermeiras que, inevitavelmente, nos seduzem com aquele uniforme-tipo-filme-pornô e com aquela cara de esperança montada para passar a ideia de que não vamos morrer nunca. Por outro lado, visto como fato social, psíquico, político, econômico e (porque não?) artístico, o direito é um banquete igual a esses que a gente só come em casamento de gente rica.
    Germano Schwartz foi um dos primeiros no Brasil a pensar intermediações do direito com o rock[1]. Apoiado na teoria dos sistemas de Niklas Luhmann, a pesquisa dele apontou as divergências aparentes entre os dois temas. De um lado o direito, preocupado em manter ostatus quo a partir dos efeitos na norma e, de outro, o rock, como elemento transgressor e contrário ao establishment. Germano mostrou a influência que o rock brasileiro dos anos 80 teve no processo de construção do rol de direitos e garantias fundamentais da Constituição de 88 (a palavra fundamentais é resquício do medo de que a ditadura voltasse, afinal, só os medos sustentam coisas FUNDAMENTAIS…). 
Por certo que uma sociedade com gente mais autônoma dispensaria tudo que é FUNDAMENTAL. Essa é uma das razões pelas quais os direitos fundamentais são só de papel. Germano ainda fez uma crítica ao rock contemporâneo – pós anos 2000 – em função do esvaziamento das intenções políticas de bandas como Restart, NXZero e outras que usam calça colorida e choram porque as pessoas ainda comem carne.

    Mas, de qual status quo falamos quando falamos de status quo? Ainda que a norma pretenda-se fixa, estável e com efeitos reparadores para o futuro, em tempos de protagonismo do Poder Judiciário, é inegável que há uma produção jurisprudencial que em nada reproduz a pretensão de estabilidade, certeza e segurança – expectativas por excelência de todos os modelos dogmático-positivistas. Toda decisão judicial alimenta o caos no direito e retira a possibilidade de que se fale de um status quo capaz de se estender além da abstração da norma. O samba-do-crioulo-doido-hermenêutico torna o direito, via produção judicativa, um discurso ambulante, acriterioso, instável, inseguro e tribal. Produto de um mosaico-recortaecola feito, em grande escala, por estagiários e assessores.

    Se o rock dos anos 80 antecipou os direitos da nossa Constituição, o fez porque a possibilidade de manifestação raivosa, própria do rock, encontrava naquela juventude tolhida de liberdade de expressão pela ditadura, uma aliada privilegiada. Sem o interdito da ditadura, qual será, hoje, a motivação da música de manifesto? Dostoiévski sabia disso quando escreveu: Se Deus não existe, tudo é permitido. Se o grande pai castrador da ditadura não existe, toda forma de expressão acaba permitida. A proibição sempre foi a maior aliada do desejo. Por isso que a mulher do próximo embala nossos desejos (in) conscientes e é sempre mais interessante do que a nossa. Só a força de um interdito cruel e torturante é capaz de gerar a quantidade de dor necessária para que a arte grite, ou conte, ou cante, ou pinte. Arte e dor são irmãs que nunca puxaram o cabelo uma da outra. Num tempo em que sentir dor é auto-heresia, não se pode pretender que o rock contemporâneo produza discursos de ordem política ou social. Mas a pergunta é: para onde se deslocou a arte de cariz político, social e até mesmo filosófico nesses tempos de relativização das proibições?


    Meu pitaco é que não podemos mais compartimentar gêneros musicais como se fazia nos anos 80. Renato Russo já dizia: o futuro não é mais como era antigamente. Como exemplo privilegiado da desconstrução dos escaninhos da música, penso nos Tribalistas, uma das marcas da nova codificação do tempo em que vivemos. Em 2002, Arnaldo Antunes, Marisa Monte e Carlinhos Brown juntaram-se. Um poeta rockeiro com jeito de mordomo de casa mal assombrada, a outra meio MPB-meio-samba-de-raiz e Carlinhos Brown que, além de dancinhas de verão, foi o inventou a Caxirola para a Copa do Mundo no Brasil…Será que o Carlinhos Brown colocou a invenção da Caxirola no currículo lattes dele.?


    Os Tribalistas como a nova cara de uma subversão que só poderia ser subversiva se não tivesse uma identidade diretamente detectável. Cantaram a carnavalização, tema caro ao pensamento de Luis Alberto Warat. 

    Cantaram também o empate: “Eu não quero ganhar, eu quero chegar junto. Sem perder eu quero um a um com você [...]Muito além do tempo regulamentar". Esse jogo não vai acabar. Esse trecho seria uma pontual epígrafe de uma pesquisa sobre mediação no direito. Afinal, hoje ninguém nega que, mesmo depois do divórcio, é possível convidar a ex-esposa pra tomar um drink.

    Os Tribalistas criaram um álbum no inicio dos anos 2000. Depois, só em 2013 foram produzir algo novo. Criaram o single Joga Arroz, que defende reconhecimento da união entre os gays. Dois anos depois do julgamento procedente da união homoafetiva pelo STF, os Tribalistas criaram. A arte reproduz ou antecipa a vida.? Essa é uma pergunta crucial de uma crítica bem intencionada que se pode fazer ao trabalho do Germano, que é bonito e importante. De 1988 até 2013, não se pode dizer com segurança se a resposta se mantém intacta.

    Minha análise é rápida e inconsistente como um tiro que erra o alvo porque a vítima escorregou numa casca de banana. A grande novidade dos Tribalistas é que foram criados para não permanecer. Além disso foram deleuzianos quando trocaram genealogias por geologias ao cantar a magistral – Pé em Deus, Fé na tábua. Essa é a explicação filosófico-musical de tudo que andamos falando por aí sobre Mediação Jurídica. Mediar conflitos é, sobretudo, destruir hierarquias e fazer os envolvidos caminharem em direção às perspectivas de novas geologias. A desterritorialização dos sentidos é a conquista da aptidão para julgar. Matar Deus, ou seja, eliminar o superior hierárquico na empresa da vida ou do direito, significa estar livre para escolher as novas geografias dos nossos desejos e angústias. E só com fé na tábua se pode encontrar essas novas geografias.

    Será que os juízes têm fé na tábua? Será que eles deslocam seus olhares perspectivos? Será que têm disposição de caminhar a outros relevos de sentido? A subjetividade da arte ajuda a curar a gangrena da objetividade e da ode às quantidades.

    Mas…se eu acredito em milagres? Hoje não.







  • http://robertofochi.jusbrasil.com.br/artigos/137931813/como-o-direito-pode-chutar-deus?utm_campaign=newsletter-daily_20140908_72&utm_medium=email&utm_source=newsletter
  • Paulo Ferrareze Filho é Doutorando em Direito (UFSC), Mestre em Direito (UNISINOS/RS), Professor Universitário e Advogado.
  • [1] SCHWARTZ, Germano. Direito e Rock: O Brock e as expectativas normativas da Constituição
  • de 1988 e do Junho de 2013. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.

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