Toni e David com os filhos Alysson, Jéssica e Felipe. / RAFAEL DANIELEWICZ
O educador Toni Reis, de 50 anos, e seu marido David Harrad demoraram
sete anos para conseguir adotar Alysson, hoje com 14 anos. “Foi um
processo difícil”, disse Reis. “Tivemos que recorrer ao Supremo Tribunal
Federal”, diz. Hoje, a família é formada por mais dois filhos além de
Alysson: Jéssica, de 11 anos, e Felipe, de nove anos.A história
de Toni e David é parecida com a de centenas de casais homossexuais que
tentam adotar filhos. Demora, e os processos costumam ser mais
complicados do que se fosse um casal heterossexual. Mas esse processo
pode ficar ainda mais difícil. Se oProjeto de Lei 6583/2013, de autoria do deputado Anderson Ferreira (PR), for aprovado, a família de Toni e David corre o risco de não ser reconhecida como família pelo Estado.
Isso significa que direitos como herança, guarda compartilhada dos
filhos em caso de separação do casal, plano de saúde corporativo e até a
associação a clubes, podem ser simplesmente negados a eles.O
texto, também chamado de Estatuto da Família, trata de políticas
públicas efetivas voltadas especialmente para a valorização da família.
Mas define como entidade familiar apenas o “núcleo social formado a
partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou
união estável ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e
seus descendentes”. Ou seja, exclui por completo a possibilidade de
união entre pessoas do mesmo sexo perante à lei.Também propõe modificar o Estatuto da Criança e do Adolescente
para exigir que as pessoas que queiram adotar um filho sejam,
necessariamente, casadas civilmente ou que mantenham uma união estável. O
que significa que casais homossexuais não teriam o direito de adotar um
filho, como fizeram, depois de anos de luta, Toni e David.“É
uma excrescência’, diz Reis, que também é ex-presidente, e atual
secretário de Educação, da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays,
Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT) e militante dos direitos
gays. “É um projeto que não dá direitos, mas tira direitos”. De acordo
com Viviane Girardi, advogada especialista em direito da família, a
questão é mais séria. Ela define a lei como inconstitucional. “A Constituição
diz que todos são iguais perante a lei”, explica. “Se essa lei for
aprovada, deve ocorrer um bombardeio de ações que vão questionar a
constitucionalidade dela”.No ano passado, foi criada uma
comissão especial para apreciar o texto do projeto de lei. Segundo a
deputada Manuela D’Ávila (PCdoB-RS), todos os 23 deputados membros da
comissão são evangélicos, exceto ela e mais três deputados petistas. Ela
também compartilha da opinião de inconstitucionalidade. “Na nossa
opinião, o Estatuto é inconstitucional”, disse. “E a nossa proposta é
que ele seja simplesmente rejeitado [e não modificado]”.Questionado
sobre a constitucionalidade da lei, o presidente da comissão, deputado
Leonardo Picciani (PMDB), desconversou. “Eu tenho evitado durante o
processo manifestar a minha posição pessoal até o término do processo
para que eu possa com tranquilidade conduzir a deliberação da matéria”,
disse. “Eu não fiz uma análise a fundo da questão constitucional da
matéria para te dizer sobre esse ponto específico”, afirmou. Procurado, o
autor do Estatuto da Família, deputado Anderson Ferreira (PR), não
retornou à ligação da reportagem.A questão é polêmica. Em fevereiro deste ano, o site da Câmara criou uma enquete online perguntando:“Você
concorda com a definição de família como o núcleo formado a partir da
união entre homem e mulher, prevista no projeto que cria o Estatuto da
Família?”. Mais de 4,6 milhões de pessoas responderam, deixando essa
como a enquete mais votada do site até agora. Das respostas, 49,98% eram
“sim”, e 49,71%, “não”. Embora denote um país dividido, o que não é surpresa, o resultado não interfere na aprovação ou não da PL, queestá agendada para ser votada pela comissão especial nesta quarta-feira.Porém,
a reunião não ocorreu na data prevista. Agora, a pauta só deve ser
discutida novamente no ano que vem, já que, devido ao recesso
parlamentar que se inicia na próxima segunda-feira, não há mais tempo
hábil para esse debate. De qualquer maneira, se for aprovada em 2015 por
uma nova comissão que deverá ser criada, entra na fila de votação na
Câmara. Em tempos de uma bancada cada vez mais conservadora, haveria, em tese, mais chances de ser aprovada.Em
2011, o Supremo Tribunal Federal aprovou, por unanimidade, que as
uniões homoafetivas deveriam ter os mesmos direitos que uniões
heterossexuais. Desde então, casais homossexuais têm direitos como
herança, benefícios da Previdência, inclusão como dependentes em plano
de saúde e adoção, dentre outros direitos. Na época, o relator Carlos
Ayres Britto argumentou que “a família é a base da sociedade, e não o
casamento”. No ano passado, o Superior Tribunal de Justiça deu mais um
passo no avanço dos direitos homossexuais: aprovou a resolução que
obriga todos os cartórios do país a registrar o casamento civil e união
estável entre pessoas do mesmo sexo.“[Se aprovada] A lei vai
superar todo o avanço que a jurisprudência fez até aqui”, diz a advogada
Viviane Girardi. Pela jurisprudência ou por exemplos internacionais, a
união entre pessoas do mesmo sexo já deveria ser uma questão superada no
Brasil. “Existem hoje 36 países que reconhecem a união entre pessoas do mesmo sexo”,
diz Toni Reis. Além disso, segundo o autor alemão Petzold, existem hoje
196 tipos de família convivendo na sociedade ocidental. Segundo ele,
esse número classifica variáveis como se os casais são casados
legalmente ou não, se têm filhos biológicos ou adotivos, se compartilham
renda, e por aí vai. Quer dizer, a união homoafetiva deveria ser
considerada apenas mais uma forma de constituir família, como outra
qualquer.Por isso, ainda que o Estatuto seja aprovado pela
comissão, depois passe pela Câmara e pelo Senado e seja sancionado pela
presidenta, ainda assim ele será questionado. “[Se a lei for aprovada]
Vai dar um bug jurídico no país”, diz Toni Reis. “Temos 70.000 casais
gays no Brasil. Desses, 3.721 se casaram só no ano passado. O que vamos
fazer com todo esse pessoal que já tem direitos garantidos?”.
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