"O nosso amor a gente inventaPra se distrairE quando acaba a gente pensaQue ele nunca existiuO nosso amor a gente inventa.
Letra de Cazuza, João Rebouças e Rogério Meanda".
No capítulo anterior, relatei sobre como os índios Tupinambás do
século XVI fabricavam uma bebida chamada cauim e se embebedavam em
grandes festas, que podia durar alguns dias.Na introdução desse texto, observei: “Os
primeiros relatos sobre os povos indígenas que habitavam o território
que viria a se chamar Brasil, como não poderia deixar de ser, foram
elaborados por brancos invasores e colonizadores. Evidentemente que tais
relatos são carregados dos preconceitos e da poderosíssima moral
católica que dominava a Europa no século XVI. [...] Logo, a leitura
desses clássicos precisa de aguçada visão crítica, pois os olhos de quem
escrevia sobre os índios que aqui habitavam viam tudo sob a ótica e
paradigmas da sua cultura europeia, de seus costumes, crenças, religião,
cultura etc. Um grande desconto, por assim dizer, há de ser dado.” Enfim,
para se falar sobre sexo entre os Tupinambás do século XVI, nosso olhar
crítico precisa estar mais aguçado ainda, vez que a moral católica e a
doutrina do “pecado original” jamais aceitariam como “natural” a nudez
dos índios ou que praticassem a poligamia e homossexualidade. Aliás,
discutia-se até se os índios tinham alma! O desconto, neste caso,
portanto, há de ser bem mais generoso. As fontes são as mesmas: Hans
Staden (1557), Jean de Léry (1578) e Gabriel Soares de Sousa (1587).
- A poligamia
Segundo Hans Staden, no relato editado na Europa em 1557, a maioria dos Tupinambás tinham apenas uma mulher, “mas alguns dos chefes tem treze ou quatorze” e a primeira delas é como se fosse a chefe entre elas. Ainda segundo Staden, “As
mulheres se entendem bem entre si. Entre os selvagens é comum que um
homem dê a outro sua mulher de presente, quando se cansa dela. Também
acontece de um homem dar de presente a outro homem uma filha ou irmã”. É como se as mulheres, portanto, fossem mero objeto de uso e os homens fossem seus donos.” [1]
De acordo com outro visitante ilustre dessas terras, poucos anos depois, Jean de Léry, “com relação ao casamento dos nossos americanos (referindo-se aos Tupinambás),
eles observam apenas três graus de parentesco; ninguém toma por esposa a
própria mãe, a irmã ou a filha, mas o tio casa com a sobrinha e em
todos os demais graus de parentesco não existe impedimento”. Em seu
relato, Léry afirma ter visto índios com oito mulheres e demonstrou
admiração pelo fato de viverem em harmonia e sem ciúmes, ocupadas em
tecer redes, limpar hortas e plantar raízes. Por fim, comparando com o
regime monogâmico da cultura católica europeia da época, Léry afirma que
se o homem europeu fosse se submeter a tal prática, melhor seria
condená-lo às galés “do que metê-lo no meio de tanta intriga e ciumeira”.
Aqui, o europeu é tão machista quanto o Tupinambá: o grave não era
transformar a mulher em objeto, mas a intriga e ciúme que o homem seria
“vítima” com a posse de várias mulheres.[2]. Muitos
anos depois, em 1587, quando os Tupinambás já tinham sofrido as
influências e violências dos brancos invasores, Gabriel Soares de Sousa,
no Tratado Descritivo do Brasil, também relatou sobre os costumes
sexuais dos Tupinambás. Segundo este autor, os Tupinambás eram, de fato,
poligâmicos, e aquele que tivesse mais mulheres “se tem por mais amado e estimado”.
Da mesma forma que outros relataram, também Gabriel Soares de Sousa
confirma que a primeira mulher exercia um papel preponderante sobre as
demais, embora relate a existência de ciúmes da primeira, por ser
geralmente a mais velha. [3]. Em
relato semelhante aos demais autores pesquisados, Gabriel Soares de
Sousa traz informações sobre o comportamento muitas vezes violento dos
homens em caso de traição das mulheres, mas acrescenta a informação de
que as próprias mulheres criavam a oportunidade para que seus homens se
deitassem com outras mulheres mais jovens: “Os machos desses
Tupinambás não são ciosos; e ainda que achem outrem com as mulheres, não
matam a ninguém por isso, e quando muito espancam as mulheres pelo
caso. E as que querem bem aos maridos, pelos contentarem, buscam-lhes
moças com que eles se desenfadem, as quais lhes levam à rede onde
dormem, onde lhes pedem muito que se queiram deitar com os maridos, e as
peitam para isso; coisa que não faz nenhuma nação de gente, senão esses
bárbaros”. (op. Cit. P. 309).
Enfim, a síntese das três
fontes pesquisadas (Staden, Léry e Sousa) não deixam dúvidas sobre o
comportamento poligâmico dos Tupinambás, a prevalência da mulher mais
velha sobre as mais jovens, o ciúme do homem e, por fim, segundo a
informação de Sousa, a própria mulher mais velha buscando mulheres mais
jovens para “desenfadarem” seus machos.
- A homossexualidade e outras “luxúrias”
As informações que se seguem têm como base apenas o relato de Gabriel
Soares de Sousa. Os demais autores pesquisados (Staden e Léry) não
trazem essas informações acerca de outros costumes dos Tupinambás,
incluindo a homossexualidade.
Assim, por exemplo, segundo o referido autor, os Tupinambás eram tão luxuriosos “que não há pecado de luxúria que não cometam”.
Seguindo neste festival de luxúrias, segundo Gabriel Soares de Sousa,
desde pouca idade os Tupinambás já tinha contato com mulheres mais
velhas, “desestimadas” pelos homens, que lhes ensinavam o que não
sabiam e não lhes deixavam de dia, nem de noite. Também diferente dos
demais autores, Gabriel Soares de Sousa relata a ocorrência de relações
de incesto entre os Tupinambás, além de relacionamento sexual com irmãs e
tias.
Além disso, em relato único, este autor traz a informação de que os Tupinambás, “não satisfeitos com o membro genital como a natureza formou”, colocavam
o pelo de um bicho peçonhento (uma caranguejeira?) no pênis para
torna-lo tão grosso e disforme, mesmo sofrendo seis meses de dores, “que os não podem as mulheres esperar, nem sofrer.”
Com relação à homossexualidade, em relato apenas encontrado em Gabriel Soares de Sousa, os Tupinambás são “muito
afeiçoados ao pecado nefando, entre os quais não se tem por afronta, e o
que se serve de macho, se tem por valente, e contam esta bestialidade
por proeza; e nas suas aldeias pelo sertão há alguns que tem tenda
pública a quantos os querem como mulheres públicas.” (op. Cit. P. 308). Não creio que precisa traduzir “pecado nefando”
no contexto apresentado, pois resta claro que um índio se achava macho e
se vangloriava por isso, enquanto outros se ofereciam, em tendas, como
mulheres públicas, ou seja, claramente este é o relato de relações
homossexuais.
Em vista disso tudo, nossos olhares contemporâneos
de igualdade de gênero, da conquista de direitos pelas mulheres, da
inscrição dessas conquistas em um Código Civil e em uma Constituição,
não podem compreender ou mesmo aceitar os costumes dos índios
Tupinambás do século XVI. Não se quer dizer, portanto, que estivessem
certos ou errados, justos ou injustos, legais ou ilegais, morais ou
imorais etc, pois nossos paradigmas atuais não se aplicam, assim como os
paradigmas dos invasores, aos costumes de um povo como os Tupinambás do
século XVI.
O que se pretende com este breve estudo, por fim, em
tempos de hipocrisias e tentativas de moldar o comportamento dos homens
e mulheres através de normas impostas, validadas e tornadas legais por
mero formalismo, ou definidas como “naturais”, é apenas registrar a
curiosidade de uma pesquisa e fazer constar que os primeiros relatos dos
que invadiram e mataram os habitantes deste território, e continuam
fazendo, assim viram e disseram sobre este povo.
Finalmente,
para os que defendem os paradigmas e dogmas de suas crenças atuais –
sejam católicos ou evangélicos - como condições imprescindíveis à
salvação e conquista do céu, é de se perguntar: então, os Tupinambás,
por tantos “pecados” cometidos – da embriaguez à homossexualidade
- estariam todos no inferno? Se sim, então não seriam filhos de Deus?
Se não, então viva a liberdade de todos os povos em todas as fases da
história da humanidade!
Fonte:http://gerivaldoneiva.jusbrasil.com.br/artigos/155146161/sexo-poligamia-e-homossexualidade-entre-os-indios-tupinambas-do-seculo-xv?utm_campaign=newsletter-daily_20141205_415&utm_medium=email&utm_source=newsletter
[1] Staden, Hans. Duas viagens ao Brasil. Porto Alegre: L&PM, 2008, p. 150.
[2] Léry, Jean de. Viagem a Terra do Brasil. São Paulo: Livraria Martins, 1941. P. 202.
[3] Sousa, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. São Paulo: Editora nacional; Brasília: INL, 1987, p. 311.
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