Diante de escândalos tsunâmicos como o da Petrobra$, que desnudam em
toda sua inteireza o lado canalha de alguns membros da classe dominante (a
canalhice, de qualquer modo, não é apanágio exclusivo dessa classe), uma das
coisas que mais impressionam é o discurso legitimador da
canalhice (sobretudo quando ela é engendrada por uma poderosíssima organização
criminosa), verbalizado de forma plácida e diáfana, para não dizer macunaímica
(herói malandro), no sentido de que a corrupção (a sonegação, o malfeito, a malandragem)
se trata de algo “natural”, “comum”, algo enraizado na “tradição” e nos
“costumes” do povo brasileiro. Lula, em 1995, quando eclodiu o mensalão do PT
(depois do mensalão do PSDB), reagiu (em Paris) dizendo que todos os partidos
políticos fazem caixa 2; a corrupção é coisa da “nossa cultura” (José Eduardo
Cardozo); “Não há no Brasil um gestor público que não tenha um processo” (Dalva
Dias, PDT-SC).
02. Nunca antes neste país se tornaram tão necessários dois
esclarecimentos: (a) a corrupção não é apenas um problema individual (pessoal,
ético), mas é, antes de tudo, isso; (b) a corrupção, sobretudo daqueles que
dominam/governam a nação, é uma canalhice maligna de magnitude hecatômbica
porque afeta também (1) o mercado e a economia (mascara a concorrência e
bilhões de reais são desviados do crescimento do país), (2) a política e a
democracia (tornando-a ilegítima), (3) a Justiça e o império da lei (assim como
a força das instituições) assim como (4) a própria sociedade (canaliza a
riqueza para os mais ricos e desmorona o chamado “capital social”, fundado na
confiança necessária para o bom funcionamento societal).
03. Das nefastas consequências da corrupção (para a economia, política,
império da lei e sociedade) vamos cuidar em outro artigo. Dela, como problema,
desde logo, individual (ético), vamos tratar em seguida, pedindo licença para
revisitar algumas noções elementares de ética e de moralidade transmitidas
pelos professores da área. Triste e degenerada é a sociedade em que um político
ou administrador público afirma que o malfeito e a corrupção é coisa de “todo
mundo”, é da tradição, dos costumes. Para começar: não é verdade que “todo
mundo” seja corrupto. Toda época tem sua estrutura moral (Aranguren), ou seja,
suas pautas de conduta, seus ideais, seus fins, seus valores. A vida, ainda que
marcada por debates e embates, não pode se desconectar de algumas margens
limitadoras, sob pena de se embrenhar para o mundo da corrupção, do
mau-caratismo, da malandragem, da desonestidade, enfim, da falta de moral (e de
ética). Em nenhum instante da nossa vida, mas sobretudo quando participamos da
vida política da cidade ou do país (da “polis” ou da res pública),
podemos admitir a mancha ou a mácula do mau-caratismo, do canalhismo.
04. A corrupção é generalizada no nosso país (isso é verdade: FHC, por
exemplo, admitiu numa entrevista à Folha que houve corrupção
para aprovar a Emenda da Reeleição, em 1996), mas nem todo mundo é corrupto
(Renato J. Ribeiro); de outro lado, ninguém é obrigado a se sujeitar a padrões
nitidamente podres ou canalhas (recorde-se que um dos sentidos da palavra
corrupção é descrever um fruto podre). Ao “clube” dos empreiteiros (para se
citar um exemplo), que agora andam dizendo que foram “extorquidos”, faltou
precisamente uma postura ética firme contra a tradição, o costume, a cultura.
Por força da ética, não somos obrigados a seguir os costumes imorais (a
canalhice) enraizados em algumas práticas econômico-financeiras, por exemplo,
muito menos na tradição política imoral do nosso País. Existiria por acaso
alguma força sobrenatural com poder para levar a maioria dos agentes
econômico-financeiros, políticos e públicos (há exceções, claro) a se comportarem
(quase sempre) de maneira irregular? Não.
05. Todas as vezes que nos deparamos com uma tradição ou costume ou com
uma ordem externa, devemos prestar atenção no seu conteúdo e na sua natureza.
Não podemos concordar muito menos praticar a canalhice. A Ética diz respeito ao
foro interno da nossa vontade (e liberdade). Somos livres (em geral) para
decidir pelo bem ou pelo mal (pelo certo ou pelo errado – veja Savater).
Podemos dizer “sim” ou “não” (veja Octávio Paz). O preço que pagamos por
contarmos com essa liberdade é a responsabilidade. Pelos atos que praticamos
devemos ser sempre responsáveis. E nesse caso nem a ordem externa nem a
tradição nem os costumes nos absolve. Nós, seres humanos, somos distintos dos
animais (das plantas e dos minerais) porque contamos (dentro de certas medidas)
com o que se chama liberdade (ainda que condicionada, mas liberdade).
O ato de corromper ou de ser corrompido (que é uma canalhice) é fruto dessa
liberdade, por isso que a corrupção é, antes de tudo (mas não somente), um
problema ético e moral. Se cada um de nós elevássemos o padrão ético (como os
suecos fizeram em 1841, por exemplo), teríamos (com certeza) menos corrupção e
menos violência no país.
Saiba mais:
06. Os animais não podem alterar seus códigos
biológicos (são o que são e não conseguem alterar o seu caminho). Fazem somente
o que estão programados naturalmente para fazer. As formigas são da forma que
são e não é facultado a cada uma delas alterar sua natureza. Os animais não
podem ser reprovados porque não sabem se comportar de outro modo (Fernando
Savater). Ou seja: não contam com autodeterminação (capacidade de entender e de
querer). Os seres humanos também somos programados (biologicamente), mas
conjuntamente com a constituiçãobiológica
também contamos com uma programação cultural, que é guiada, em grande parte,
pela nossa autodeterminação. Por isso é que “sempre podemos optar finalmente
por algo que não esteja no programa. Podemos dizer “sim” ou “não”, quero ou não
quero. Nunca temos um só caminho a seguir. Temos vários” (Savater).
07. "Somos indivíduos livres e nossa liberdade nos condena a
tomarmos decisões durante a nossa vida” (Sartre). Premissa básica da
convivência humana é que não podemos fazer tudo que queremos. Por mais poderoso
que alguém seja, a vida não pode seguir os seus caprichos. Não existe liberdade
sem limites e sem responsabilidade. Embora dentro de certos parâmetros, podemos
inventar e eleger (em grande parte) nossa forma e nosso estilo de vida. Mas
também podemos nos equivocar (isso é certo – errare humanum est). A
essa arte de viver bem (com expurgo da canalhice) chamamos de ética que, na
verdade, não significa apenas a “arte de viver bem”, senão a “arte de viver bem humanamente”
(respeitando nossos semelhantes, ou seja, ou ostros caminhantes, os direitos
humanos, os valores básicos de convivência etc.). Tratar nossos semelhantes (os
outros caminhantes) como “insetos” (ou ignorá-los completamente, como é a
postura da indiferença) significa ferir profundamente os preceitos éticos que
norteiam nossa existência.
08. Uma coisa é lutar pela sobrevivência, estando
isolado em uma ilha (como foi o caso de Robinson Crusoé, criado por Daniel
Defoe, em 1719). Outra bem distinta é viver em sociedade (ou seja: “con-viver”
com seus semelhantes, com os outros caminhantes). Defoe (pelo que consta na
Wikipedia) “inspirou-se na história verídica de um marinheiro escocês, Alexander Selkirk,
abandonado, a seu pedido, numa ilha do arquipélago Juan Fernández, onde viveu de 1704 a 1709. Robinson
Crusoe herda desta história o mito da solidão, na medida em que vive sozinho
durante vinte e cinco anos, antes de encontrar a personagem Sexta-Feira. O
romance simboliza a luta do homem só contra a natureza, a reconstituição dos
primeiros rudimentos da civilizaçãohumana,
testemunhada apenas por uma consciência e dependente de uma energia própria”.
09. A partir do momento em que outro ser humano aparece na nossa “ilha” (que
não é a mesma de Robinson Crusoé), não há como não tratá-lo como semelhante
(como outro caminhante). Nesse caso, surge mais uma premissa básica de
convivência: jamais podemos fazer aos outros o que gostaríamos que não fizessem
conosco (no mundo oriental, fala-se no princípio da “ahimsa”). A Ética,
a partir do momento em que temos que conviver com outros caminhantes
(semelhantes), evolui da “arte de viver bem” para a “arte de viver bem humanamente”.
É que temos que viver com os outros ou contra os
outros, porém humanamente (ou seja: entre seres
humanos, como diz Savater). O que transforma nossa vida em vida humana é que,
não estando nós numa ilha isolada, como Robinson Crusoé, somos todos compelidos
a passar todos os dias da nossa vida em companhia de outros seres humanos,
interagindo com eles, falando com eles, negociando com eles, amando,
construindo sonhos ou castelos, fazendo projetos, jogando, discutindo,
concordando, discordando, debatendo etc. Mas todos somos seres humanos (e como
humanos todos devemos ser tratados).
10. Cada dia fica mais claro no nossoo país que nem o Estado, nem o
mercado, nem o capitalismo egoísta/selvagem, nem os políticos, muito menos os
partidos, ou seja, nem o sistema político nem o sistema econômico está
cumprindo o que deveria ser feito, ao contrário, a desconfiança é generalizada
porque no lugar do que deveriam fazer eles incrementam cada vez mais a
desigualdade, a concentração do poder e da riqueza, a contaminação, a
destruição do meio-ambiente, o desemprego, a má-qualidade do serviço público, a
corrupção, a violência, os desmandos e, o que é mais importante, “a degradação
dos valores que sustentam a sociedade, onde tudo é aceitável e ninguém é
responsável” (Stiglitz). O “cada cabeça um voto” (eixo da democracia representativa
clássica) se transformou em cada voto um dólar. Daí todo
questionamento que se faz frente à democracia vigente, marcada pelo compadrismo
espúrio entre a economia corrupta e a política assim como entre a política e a
governança. O mau-caratismo (a canalhice – um mal de todos os tempos) só pode
ser combatido com a Ética e a cidadania.
11. A corrupção sórdida que invadiu até às vísceras a Petrobra$ equivale
no plano esportivo a fazer um gol com a mão. Trata-se de um comportamento
imoral ou antiético. Gilberto Freyre, em 1938, falou da habilidade dos mulatos
brasileiros no futebol, da astúcia, da espontaneidade individual (veja Ronaldo
Helal, O Globo de 02.11.12, p. 19). Na cultura brasileira, a partir daí,
fala-se no jogador competente, regular, esforçado, assim como no astuto, no
malandro. Ambos possuem espaços na cultura brasileira (tal qual bem notou
Antonio Cândido, com sua crítica à “dialetica da malandragem”). Também há quem
admira heróis malandros (Macunaíma dá bem a ideia disso). Isso, aliás, explicaria
a atitude daqueles que apoiam o gol feito com as mãos. Mas há atos, costumes,
convenções, regras e convicções gerais que podem ser imorais (ou más ou
erradas). Por mais que da nossa cultura faça parte o herói malandro, é claro
que não podemos concordar com a malandragem, com o engodo, com o errado. Daí
censurarmos o gol feito com a mão, que é, antes de tudo, imoral. Ninguém pode
se beneficar da malandragem.
12. Os humanos, diz o filósofo Savater (Ética de urgência, p.
119), “somos maus o quanto nos deixam ser. Se alguém acredita que pode fazer
algo e alcançar alguma vantagem, se está completamente seguro de que nada vai
ocorrer, pois o fará”. Se o mal (a canalhice) e a malandragem não são
censurados, reprovados, tudo continua como está. Não é verdade que a ética só
vale para alguns momentos, podendo ser suspensa em outros. Ela nos vincula para
toda a vida. Nos concretos atos da nossa vida, quando em jogo está o (superior)
plano ético, você não tem que perguntar a ninguém o que deve ser feito:
pergunte a você mesmo (Savater). E mais, não vale ser ético somente durante um
trecho da sua vida. Por quê? Como bem disse, com toda sabedoria e sensatez, a
ministra do STF, Cármen Lúcia: “A vida é igual a uma estrada. Não adianta você
dizer que foi na reta certinho mil quilômetros e depois você entra na contramão
e pega alguém. É a mesma coisa. Você tem que ser reto a sua vida inteira.
Independente do que o outro fizer, independente de o outro atravessar a
estrada. Se você estiver certo, você terá contribuído para o fluxo da vida ser
mais fácil. Isso no serviço público muito mais”.
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